terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O Pente

“Não dirás falso testemunho contra o teu próximo”.

                                 Êxodo Cap. 20 - 16



Logo cedo numa manhã mais que ordinária, ao vasculhar os bolsos da sua calça jeans, com a máquina de lavar ansiosa para cumprir as suas funções mecânicas, caiu ao chão um pente.


O pente de um marron-claro pequeno era o mais carnal objeto que pertencia a você.


Segurando a calça jeans na mão, fixei meu olhar naquele objeto simples, caído, silencioso, e até imaginei que quando você o usaria, deveria sentir uma solidão ao se pentear sozinho, sem mim.
Eu queria ser aquele pente naquele momento congelado.
Algum chinês deve ter feito o seu pente, no meio de toda a nação de chineses que lavam os seus cabelos com urina e comem escorpiões vivos...
Peguei-o do chão e aproximei mais perto dos meus olhos, notei que seus dentes pareciam uma escala musical, indo do mais grosso ao mais fino, e achei que encontraria ali um vestígio humano seu, um fio de cabelo, uma impressão gordurosa dos seus dedos, mas apenas havia gravado no objeto uma marca Carioca 20.
O pente parecia ter uma forma de um bigode grotesco, disforme, dando a impressão mais idiota que pude capturar naquele instante.
Quando você se penteia, sua outra mão acaricia o resto da sua cabeça? O que há dentro da sua cabeça que faz brotar os fios dos seus cabelos descabelados?
Seriam seus pensamentos que germinam e explodem os bulbos capilares? Seria uma ligação hormonal-química que empurra os seus cabelos para baixo?
Lembrei de uma foto de Karl Marx sentado, com uma barba e cabeleira vasta e desgrenhada, com a mão direita enfiada por dentro de seu paletó preto e com seus olhos profundos e cansados e com a forma do seu nariz afilado que se parecia muito com o seu.


Pensei em fazer amor com Karl Marx...


Mas Marx era comunista e você não.
Marx já estava morto e eu também. Eu era o fantasma de mim que segurava o seu pente, a única prova da sua existência, o único objeto que fora tocado por suas mãos que são grandes, pesadas, com pelos pequenos e dourados torneando os cantos, e jurei não acreditar que aquele objeto tão frágil se ajustaria nas mãos de um gigante.
Quando você faz amor comigo, naqueles movimentos repetitivos que levantam e abaixam a sua bunda, empurrando mais fundo o seu órgão, você expele o líquido que o mantém aliviado e vivo.
Você revive em mim e eu te recebo.
O que faz expelir de dentro da sua cabeça para que seus cabelos nunca parem de crescer?
Seriam as lembranças de amores, seriam as músicas que entraram pelos seus ouvidos, seriam as frutas intermináveis e coloridas que você devora com pressa, seriam os perfumes que você aspirou pelas narinas perambulando bêbado por ruas sem nome, seriam as agulhas e seringas cheias daquele líquido leitoso que você não pára de injetar em suas veias?

O que faz te expulsar para a vida?
O que você expurga?
O que você faz para poder me amar?
O pente poderia ser quebrado facilmente pelas minhas mãos.
Alguém em algum lugar na Alemanha já deve ter feito isso também. Alguém que como eu já morreu com o coração rasgado por uma foice e pregado numa praça pública com um martelo, enquanto eu segurava o seu jeans e olhava para o seu pente íntimo, intensíssimo, intimidante...
Nada mudaria de agora em diante.
Não quebrei o pente, pus a sua calça para lavar, nada mudou a rotina nem mesmo as nuvens que enchiam o céu de algodões doces extremamente melados.
Nada mudaria nem por mim e nem por você.
O pente possuía 56 dentes.
Marx sobrevive a 127 anos.
Eu estou lavando as suas roupas e fazem 14 anos que nos conhecemos.
Faz 14 anos que eu estou morto.


                                   João Luis Bizachi